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Destaques da edição de Agosto de 2019
À margem do Fórum de Apoio à Reconversão da Economia, organizado em Maio, pela Associação Industrial de Angola (AIA) e o Grupo Boa Vida, a África 21 conversou com o Prof. Ladislau Dowbor, o principal orador convidado ao evento. A entrevista, que se segue, é apenas um resumo desta conversa, que abordou os grandes desafios actuais da humanidade.
Por João Belisário
África21: Professor Ladislau, qual foi a sua primeira impressão ao retornar à Angola, depois de tanto tempo?
Ladislau Dowbor: A primeira impressão, a partir da primeira vez que vim, em 1976 ou 1977 e, depois, com a comitiva do presidente Lula, é que houve uma grande expansão. Com todos os problemas que ainda há, realmente houve um progresso absolutamente imenso. Estou falando de Luanda, porque não conheço o interior do país. Mas, pelo meu trabalho como economista, vejo que temos um problema de financialização, que atinge Angola de maneira muito forte e que, inclusive, é parecido com os outros países que estão sendo atingidos, inclusive o Brasil.
A21: Pode explicar-nos melhor o que é a financialização?
LD: O mundo está globalizado. Todos sofrem as mesmas consequências. O PIB, no mundo, aumenta cerca de dois ou 2,5% ao ano. Já os rendimentos financeiros, que não produzem, renderam nas últimas décadas, entre 7 a 9%. Então, se entre você investir você fizer uma aplicação financeira que rende muito mais e sem esforço, você tem um desvio das capacidades financeiras. Em vez de ser transformado em investimento produtivo, investimento de produção de bens e serviços, o dinheiro é desviado para o conjunto do sistema de aplicação financeira.
Esse desvio, para a financialização, que hoje é estudado mundialmente (financialization, em inglês), trás como principal impacto um enriquecimento absolutamente surrealista de quem trabalha apenas com papéis, que faz aplicações financeiras e não investimento. É o que a gente chama hoje, em finanças, de “financial snowballeffect”, efeito bola de neve. Aplicar dinheiro de maneira improdutiva gera muito mais dinheiro e tem um efeito exponencial, ou seja, cada dinheiro que você ganha mais, acelera o processo de o ganhar. O ritmo de enriquecimento dos mais ricos é muito mais acelerado, o que gera uma dimensão de desorganização, porque esse dinheiro tem que vir de algum lugar, ou seja, é um processo extractivo. Essa bola de neve provoca um terceiro efeito, que é essa desigualdade se criando no planeta. Nós temos 1% dos mais ricos que têm mais património do que os 99% restantes. No Brasil, por exemplo, seis pessoas têm mais património do que a metade mais pobre da população. No mundo, são 26 famílias que têm mais riqueza que os três biliões e 700 milhões. Isso é completamente surrealista.
A21: Esse capital improdutivo não tem origem, de certa forma, também na indústria?
LD: Está associado directamente. Há três décadas, o industrial repassava 10 a 15% para os accionistas, mas 70, 80, 85% do dinheiro ia ser reinvestido para expandir a capacidade produtiva. Então você tinha um sistema em que o aporte de quem compra as acções era transformado em capacidade produtiva. Havia uma remuneração moderada, que permitia que a maior parte dos lucros servisse para a expansão da própria capacidade produtiva. Mas esse sistema se desarticulou. Uma empresa, hoje, guarda apenas 15 a 20% para o reinvestimento, porque o grosso do lucro vai, sobre a forma de dividendo, para os accionistas. Esse processo financeiro gera profunda desigualdade e perda de capacidade das empresas se expandirem, não só porque há uma extracção de dividendos, absolutamente exagerada, mas também porque, com o reforço da desigualdade com o volume dos recursos chupados pelos mais ricos, você fragiliza a capacidade de compra, você reduz a expansão da demanda.
A21: Como se apresenta o desafio ambiental?
LD: O desafio ambiental é planetário. Tudo quanto é país, tudo quanto é empresa, está querendo extrair o máximo. Tem madeira no país? Vamos extrair. Nas pescas, agora temos equipamentos modernos a rapar tudo, você liquida a capacidade de reprodução dos peixes, você está matando o futuro, mas o que interessa é render agora. Você tem a contaminação das águas, porque é mais simples jogar resíduos químicos, colocar esgotos nos rios, nas praias, do que colocar filtros, fazer reciclagem. A contaminação das águas, pelos plásticos, é um desastre planetário. E só agora as pessoas estão se dando conta da liquidação da biodiversidade. De 1970 a 2010, liquidamos 52% dos invertebrados do planeta. A química e os agrotóxicos estão liquidando os insectos. Claro que há variações, inclusive na própria África mas, no conjunto, em todo o mundo, os insectos estão desaparecendo. A monocultura com agrotóxicos e os químicos no solo estão contaminando os lençóis freáticos e não existe tecnologia de recuperação de águas subterrâneas. É o nosso problema no Brasil. Há um conjunto de impactos ambientais que são absolutamente desastrosos.
A21: Mas, nesse aspecto, já se buscam soluções …
LD: Sim, ao mesmo tempo é uma oportunidade, porque você pode entrar num outro sistema agrícola, por exemplo a agricultura de precisão, com menos agrotóxicos, etc. Você pode dinamizar toda a indústria de alternativas energéticas, solar, etc. Você pode repensar o sistema de transporte para o transporte eléctrico. Você tem um conjunto de soluções à vista. Mas, o único país que está fazendo realmente a lição de casa é a China. A Dinamarca está fazendo, a Alemanha está fazendo mas, em grande escala, é a China que está fazendo um gigantesco esforço ambiental.
O Estado, aí, tem que ter o papel de guia, de articulador público. Nenhuma empresa, nenhum grande grupo económico-financeiro vai reduzir os seus dividendos, reduzir os seus lucros, porque os passarinhos ou as abelhas estão morrendo. O que está por detrás disso é resgatar a capacidade dos governos para começar a enfrentar os problemas. Não nos faltam recursos.
(Leia o artigo na integra na edicção nº140 da Revista África21, mês de Junho)
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